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segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dramática gramática


Eu conheço o inverso das suas palavras. As afirmativas das suas negativas. As vírgulas do seu ponto final. As exclamações das suas interrogativas e as interrogativas das suas exclamações. Ouço a ausência em suas frases. Observo o improviso da sua coesão. Reconheço a sua ambígua coerência. Encaixo-me entre os seus parêntesis. Às vezes procuro alguma preposição que nos una. Vou mais longe e anseio por dois pontos que nos expliquem. Espero que a primeira pessoa do singular se torne a primeira pessoa do plural. Finjo que sou o seu objeto direto. Tento esquecer que você é um sujeito oculto. Maravilho-me pensando em metáforas. Reconheço a sua voz, sempre passiva. Imagino-te como a minha oração subordinada. Defino-te como o meu artigo indefinido. Finjo que o seu nome não se substitui por um pronome. Tento esquecer as suas reticências. Perco-me na nossa desconhecida gramática. Um dia aprenderei a conjugação do seu verbo.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sob a aurora



Não vejo as nuances. Visto-as. Matizo-as. Misturo o branco da paz com o negro do luto (mas não visto o cinza, apesar de conhecê-lo). Enfeito-me com uma echarpe vermelha. Atenciosa, essa empresta a sua cor para as minhas iras (nem sempre escarlates). Às vezes, perco-as no azul místico que oscila entre as cores do oceano dos teus olhos (que não são azuis). De repente, ao regressar, incorporo-me de todas as outras cores. Eu: aurora corporal.

sábado, 19 de maio de 2012

Díspares singulares


As palavras caladas falam.
Os olhares desviados intimidam.
As verdades escondidas esclarecem.
Os gestos contidos se mostram.
Os beijos esquecidos relembram.
Os abraços perdidos se encontram.
A embriaguez desvela a lucidez.
O medo engana a certeza.
A negação confirma o contrário.
O que é mostrado se esconde.
As crenças se desmentem.
O que é completo se desfaz.
A razão é a loucura.
O fim é inacabado.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Intravenosa


As mais aromatizadas cores.
As mais sonoras flores.
Os mais saborosos amores.
O acariciar das dores:
o mais sinestésico dos ardores.

domingo, 6 de maio de 2012

Fábula


“If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is, infinite.” [1]
Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.


Não havia tempo. Não havia dor. Só havia o necessário. Nem mesmo os caminhos cruzavam outros caminhos. As palavras não ecoavam. Não havia culpa. Não havia nem mesmo o verbo haver, com toda a sua impessoalidade. Não havia sorte, não era preciso. A palavra “não” era desconhecida. A palavra “medo” seguia o rastro dessa. Não havia lucidez. Só havia o momento. Não era preciso alegria, não era preciso senti-la. Não existiam mitos. Não existiam crenças. Não havia entrada. Não havia saída. Não existia o ter. Só bastava ser. Então existiria tudo. Existiríamos todos.

[1] William Blake. “The marriage of Heaven and Hell”.

sábado, 5 de maio de 2012

Dictum et Factum


Nem sempre encontramos caminhos.
Nem sempre nos vemos sozinhos.
Nem sempre a mentira é a culpa.
Nem sempre aceitamos a desculpa.
Nem sempre as palavras falam.
Nem sempre os sentidos calam.
Nem sempre o olhar encalça.
Nem sempre a verdade disfarça.
Nem sempre nos aceitamos.
Nem sempre nos concretizamos.
Nem sempre a alma vive.
Nem sempre a fé sobrevive.
Nem sempre nos extinguimos.
Nem sempre nós existimos.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Alumbramento






Os fogos de artifício a fizeram sonhar. As diferentes nuances ficaram pintadas em seu rosto. A tristeza foi-se embora, apagou-se. As luzes dançaram sobre o seu corpo. Toda a sua amargura fora iluminada. Não consigo descrever o brilho que havia em seus olhos. Ela nunca foi tão bonita. Ela nunca sentiu-se tão bonita, tão colorida. Os fogos cessaram-se, mas ela continuou viva. Personificou-se o reflexo. Seu rosto iluminou-se de tal forma que senti-me cego. Ela parecia uma pintura impressionista. Impressionante. Nunca esquecerei aquele instante. Reluzente, ela iluminou-me os olhos, tocou-me os sentidos. Há tempos eu não via aquele brilho perdido. Iluminei-me com aquele sorriso. Da noite, fez-se o dia.

Via sacra


Finges que tudo passa,
que o esquecimento basta.
Finges que tudo foge.
Roubaste-me a minha sorte.
Fortalece-te o que me dói.
Brincas com o que me corrói.
A mentira virou verdade.
A pureza tornou-se vaidade.
A dúvida tornou-se a resposta.
Confesso: fizeste-me morta.
Mas não ergas o teu troféu.
Não há atalho para o céu.
Nem, tampouco, para o paraíso.
Onde escondestes o meu sorriso?



"Porque não é pela via da linguagem que eu hei de
transmitir o que em mim existe. O que existe em mim não há palavra que o diga"

Antoine de Saint-Exupéry